POEMAS & POESIAS PARA O ENEM- Autores mais citados e comentados




             






POSTADO POR VALDETE FREITAS EM 13/08/2020


       POSTAGEM CRIADA E POSTADA EM 21/07/2020- Por VALDETE FREITAS



25 poemas de Carlos Drummond de Andrade-Comentados e Analisados

 

Carolina Marcello

Carolina Marcello

Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro de 1902 — 17 de agosto de 1987) é um dos maiores autores da literatura brasileira, sendo considerado o maior poeta nacional do século XX.

Integrada na segunda fase do modernismo brasileiro, sua produção literária reflete algumas características do seu tempo: uso da linguagem corrente, temas do cotidiano, reflexões políticas e sociais.

Através de sua poesia, Drummond foi eternizado, conquistando a atenção e a admiração dos leitores contemporâneos. Seus poemas se centram em questões que se mantêm atuais: a rotina das grandes cidades, a solidão, a memória, a vida em sociedade, as relações humanas.

Entre suas composições mais famosas, se destacam também aquelas que expressam reflexões existenciais profundas, onde o sujeito expõe e questiona seu modo de viver, seu passado e seu propósito. Confira alguns dos poemas mais famosos de Carlos Drummond de Andrade, analisados e comentados.

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Este é, provavelmente, o poema mais célebre de Drummond, pelo seu carácter singular e temática fora do comum. Publicado em 1928, na Revista da Antropofagia, "No Meio do Caminho" expressa o espírito modernista que pretende aproximar a poesia do cotidiano.

Referindo os obstáculos que surgem vida do sujeito, simbolizados por uma pedra que se cruza no seu caminho, a composição sofreu duras críticas pela sua repetição e redundância.

Contudo, o poema entrou para a história da literatura brasileira, mostrando que a poesia não tem de ficar limitada aos formatos tradicionais e pode versar sobre qualquer tema, até mesmo uma pedra.

Consulte também a análise completa do poema "No meio do caminho tinha uma pedra".

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Um dos aspectos que captam imediatamente a atenção do leitor neste poema é o facto do sujeito referir a si mesmo como "Carlos", primeiro nome de Drummond. Assim, existe uma identificação entre o autor e o sujeito da composição, o que lhe confere uma dimensão autobiográfica.

Desde o primeiro verso, ele se apresenta como alguém marcado por "um anjo torto", predestinado a não se enquadrar, a ser diferente, estranho. Nas sete estrofes são demonstradas sete facetas diferentes do sujeito, demonstrando a multiplicidade e até contradição dos seus sentimentos e estados de espírito.

É evidente o seu sentimento de inadequação perante o resto da sociedade e a solidão que o assombra, por trás de uma aparência de força e resiliência (tem "poucos, raros amigos").

Na terceira estrofe, alude à multidão, metaforizada nas "pernas" que circulam pela cidade, evidenciando o seu isolamento e o desespero que o invade.

Citando uma passagem da Bíblia, compara o seu sofrimento com a paixão de Jesus que, durante a sua provação, pergunta ao Pai por quê Ele o abandonou. Assume, assim, o desamparo que sente perante Deus e a sua fragilidade enquanto homem.

Nem mesmo a poesia parece ser uma resposta para essa falta de sentido: "seria uma rima, não seria uma solução". Durante a noite, enquanto bebe e olha a lua, o momento da escrita é aquele onde se sente mais vulnerável e emocionado, fazendo versos como uma forma de desabafar.

Leia também a análise completa do Poema de Sete Faces.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Com o título "Quadrilha", esta composição parece fazer referência à dança europeia com o mesmo nome que virou tradição nas festas juninas brasileiras. Vestidos com disfarces, os casais dançam em grupo, conduzidos por um narrador que propõe várias brincadeiras.

Usando essa metáfora, o poeta apresenta o amor como uma dança onde os pares se trocam, onde os desejos se desencontram. Nos três primeiros versos, todas as pessoas mencionadas sofrem de amores não correspondidos, menos Lili "que não amava ninguém".

Nos quatro versos finais, descobrimos que todos os romances falharam. Todas as pessoas mencionadas acabaram isoladas ou morreram, apenas Lili casou. O absurdo da situação parece ser uma sátira sobre a dificuldade de encontrar um amor verdadeiro e correspondido. Como se fosse um jogo de sorte, apenas um dos elementos é contemplado com o final feliz.

Confira também a análise completa do poema Quadrilha.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Um dos maiores e mais conhecidos poemas de Drummond, "José" exprime a solidão do individuo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de estar perdido na vida. Na composição, o sujeito lírico se interroga repetidamente acerca do rumo que deve tomar, procurando um sentido possível.

José, um nome muito comum na língua portuguesa, pode ser entendido como um sujeito coletivo, simbolizando um povo. Assim, parecemos estar perante a realidade de muitos brasileiros que superam inúmeras privações e batalham, dia após dia, por um futuro melhor.

Na reflexão sobre o seu percurso é evidente o tom disfórico, como se o tempo tivesse deteriorado tudo em seu redor, o que fica nítido em formas verbais como "acabou", "fugiu", "mofou". Listando possíveis soluções ou saídas para a situação atual, percebe que nenhuma delas funcionaria.

Nem mesmo o passado ou a morte surgem como refúgios. Contudo, o sujeito assume a sua própria força e resiliência ("Você é duro, José!"). Sozinho, sem a ajuda de Deus ou o apoio dos homens, continua vivo e segue em frente, mesmo sem saber para onde.

Consulte também a análise completa do poema "José" de Carlos Drummond de Andrade.

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Apresentando o ser humano como um ser social, que existe em comunicação com o outro, nesta composição o sujeito defende que o seu destino é amar, estabelecer relações, criar laços.

Descreve as várias dimensões do amor como perecíveis, cíclicas e mutáveis ("amar, desamar, amar"), transmitindo também as ideias de esperança e renovação. Sugere que mesmo perante a morte do sentimento, é preciso acreditar no seu renascimento e não desistir.

Apontado como "ser amoroso", sempre "sozinho" no mundo, o sujeito defende que a salvação, o único propósito do ser humano está na relação com o outro.

Para isso, tem que aprender a amar "o que o mar traz" e "sepulta", ou seja, o que nasce e o que morre. Vais mais além: é preciso amar a natureza, a realidade e os objetos, ter admiração e respeito por tudo o que existe, já que esse é "nosso destino".

Para cumpri-lo é necessário que o indivíduo seja teimoso, "paciente". Deve amar até a falta de amor, por conhecer sua "sede infinita", a capacidade e vontade de amar mais e mais.

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Publicado em 1940, na antologia Sentimento do Mundo, este poema foi escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. É notória a temática social presente, retratando um mundo injusto e repleto de sofrimento.

O sujeito descreve a dureza da sua vida sem amor, religião, amigos ou sequer emoções ("o coração está seco"). Em tempos tão cruéis, repletos de violência e morte, ele tem que se tornar praticamente insensível para suportar tanto sofrimento. Deste modo, sua preocupação é apenas trabalhar e sobreviver, o que resulta numa solidão inevitável.

Apesar do tom pessimista de toda a composição, surge um laivo de esperança no futuro, simbolizada pela "mão de uma criança". Aproximando as imagens da velhice e do nascimento, faz referência ao ciclo da vida e à sua renovação.

Nos versos finais, como se transmitisse uma lição ou conclusão, afirma que "a vida é uma ordem" e deve ser vivida de forma simples, focada no momento presente.

Consulte também a análise completa do poema "Os ombros suportam o mundo" .

Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Partindo do próprio título, neste poema é inegável a visão negativa do sujeito acerca dos relacionamentos amorosos. Descrevendo o amor como "destruição", reflete sobre o modo como os casais se amam "cruelmente", como se lutassem. Sem enxergar a individualidade do outro, deixam de se ver, procurando uma projeção de si mesmos no parceiro.

É o próprio amor que parece "estragar" os amantes, corrompê-los, levá-los a agir desta forma. Alienados, não percebem que a união os destrói e afasta do resto do mundo. Por causa dessa paixão se apagam e se anulam mutuamente.

Destruídos, guardam a memória do amor como uma "cobra" que os persegue e morde. Mesmo com a passagem do tempo, essa memória ainda machuca ("quedam mordidos") e a lembrança do que viveram persiste.

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

"Congresso Internacional do Medo" assume uma temática social e política que espelha o contexto histórico da sua criação. Depois da Segunda Guerra Mundial, uma das questões que mais assombrou poetas e escritores foi a insuficiência do discurso perante a morte e a barbárie.

Esta composição parece refletir o clima de terror e petrificação que atravessava todo o mundo. Esse sentimento universal se sobrepõe totalmente ao amor e até ao ódio, criando a desunião, o isolamento, a frieza "que esteriliza os abraços".

O sujeito pretende expressar que a humanidade ainda não superou todo o sofrimento a que assistiu, sendo assombrada e comandada apenas pelo medo e esquecendo todas as outras emoções.

A repetição ao longo de todo o poema parece sublinhar que essa insegurança constante, essa obsessão, levará os indivíduos à morte e se perpetuará depois deles, em "flores amarelas e medrosas". Assim, Drummond reflete acerca da importância de nos curarmos, enquanto humanidade, e reaprendermos a viver.

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Nesta composição, o sujeito lírico parece falar diretamente com o seu leitor ("você"). Procurando aconselhá-lo, partilhar sua sabedoria, formula neste seus votos de transformação para o novo ano.

Começa recomendando que este seja realmente um ano diferente dos anteriores (tempo "mal vivido", "sem sentido"). Para isso, é necessário buscar uma mudança real, que vá além da aparência, que gere um futuro novo.

Prossegue, afirmando que a transformação deve estar presente nas pequenas coisas, tendo origem no interior de cada um, nas suas atitudes. Para isso, é preciso cuidar de si mesmo, relaxar, se compreender e evoluir, sem precisar de luxo, distrações ou companhia.

Na segunda estrofe, consola seu leitor, determinando que não vale a pena se arrepender de tudo o que fez, nem acreditar que um novo ano será a solução mágica e instantânea para todos os problemas.

Pelo contrário, tem que merecer o ano que chega, tomar a decisão "consciente" de mudar a si mesmo e, com muito esforço, mudar a sua realidade.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Publicado em 1940, na ressaca da Primeira Guerra, o poema reflete um mundo ainda abalado perante o terror do fascismo. O sujeito frágil, pequeno, humano, possui "apenas duas mãos" para carregar o "sentimento do mundo", algo de enorme, avassalador. Em seu redor, tudo o confronta com a vulnerabilidade da vida e a inevitabilidade da morte.

Rodeado de guerra e morte, se sente alienado, distante da realidade. Fazendo menção à luta política, através do uso da expressão "camaradas", sublinha que foi surpreendido por uma guerra maior, a batalha pela sobrevivência de cada um.

Leia também a análise completa do poema "Sentimento do Mundo".

As Sem-Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

O jogo de palavras presente no título do poema (a assonância entre "sem" e "cem") está diretamente relacionado com o significado da composição. Por muitas razões que tenhamos para amar alguém, elas serão sempre insuficientes para justificar esse amor.

O sentimento não é racional ou passível de explicações, ele simplesmente acontece, mesmo se o outro não merecer. O sujeito acredita que o amor não pede nada em troca, não precisa ser retribuído ("com amor não se paga"), nem pode ser submetido a um conjunto de regras ou instruções, porque existe e vale em si mesmo.

Comparando o sentimento amoroso à morte, declara que consegue superá-la ("da morte vencedor"), embora muitas vezes desapareça de repente. Parece ser esse caráter contraditório e volátil do amor que contém também o seu encanto e mistério.

Confira a análise detalhada do poema As Sem-Razões do Amor.

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Abalado e triste, o sujeito questiona a vontade divina, perguntando por que Deus leva as mães e deixa seus filhos para trás. Fala na figura maternal como algo maior que a própria vida ("Mãe não tem limite"), uma eterna "luz que não apaga".

A repetição do adjetivo "puro" sublinha o caráter único e grandioso da relação entre mães e filhos. Por isso, o eu lírico não aceita a morte de sua mãe, já que "morrer acontece com o que é breve". Pelo contrário, ela é imortal, está eternizada na sua memória e continua presente nos seus dias.

Desse modo, a vontade de Deus é um "mistério profundo" que o sujeito não consegue decifrar. Se opondo ao funcionamento do mundo, afirma que se fosse o "Rei" não permitiria mais que as mães morressem.

Este desejo quase infantil de inverter a ordem natural das coisas vem lembrar que, mesmo depois de adultos, os filhos continuam necessitando do colo materno. O filho "velho embora, / será pequenino" sempre nos braços de sua mãe.

O poema marca, assim, uma dupla solidão e orfandade do sujeito. Por um lado, perde a progenitora; por outro, começa a questionar sua relação com Deus, incapaz de compreender e aceitar o sofrimento presente.

O Amor Bate na Porta

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

O poema fala sobre o poder transformador do sentimento amoroso e as emoções contraditórias que gera no sujeito lírico. A paixão súbita altera os comportamentos de homens e mulheres: basta uma "cantiga de amor sem eira / nem beira" para virar "o mundo de cabeça para baixo", subvertendo as regras sociais.

Assim, o amor surge personificado, uma figura andrógina que invade a casa e o coração do eu lírico, afetando até a sua saúde ("cardíaco e melancólico"). A antítese entre as "uvas meio verdes" e os "desejos já maduros" parece ser uma alusão às expectativas românticas que frequentemente causam frustração nos amantes. Mesmo quando "verde" e ácido, o amor pode adoçar a boca daquele que o vive.

Selvagem e esperto como um "bicho instruído", o amor é corajoso, temerário, segue seu caminho correndo todos os riscos. Muitas vezes, esses riscos geram sofrimento e perda, simbolizada aqui com a figura caindo da árvore ("Pronto, o amor se estrepou").

Usando um tom humorístico e quase infantil, o sujeito parece relativizar esse sofrimento, encarando-o como parte das aventuras e desventuras cotidianas.

A imagem do amor no chão, se esvaindo em sangue, simboliza o coração partido do eu lírico. Trata-se de um final trágico que deixa uma ferida, que não se sabe quando passará ("às vezes não sara nunca / às vezes sara amanhã"). Mesmo machucado, "irritado, desapontado" depois da desilusão, continua vendo novos amores nascendo, mantendo uma inexplicável esperança.

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Como uma espécie de arte poética, esta composição expressa as intenções e os princípios do sujeito enquanto escritor. Se demarcando de movimentos e tendências literárias anteriores, declara que não escreverá sobre um "mundo caduco". Também afirma que não está interessado no "mundo futuro". Pelo contrário, tudo o que merece sua atenção é o momento presente e aqueles que o rodeiam.

Se opondo aos modelos antigos, aos temas comuns e às formas tradicionais, traça suas próprias diretrizes. Seu objetivo é andar "de mãos dadas" com o tempo presente, retratar sua realidade, escrever livremente sobre aquilo que vê e pensa..

Balada do Amor através das Idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigámos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

Logo nos dois versos iniciais do poema percebemos que o sujeito e sua amada são almas gêmeas, destinadas a encontros e desencontros ao longo dos séculos. Apesar do amor que os une, vivem paixões proibidas em todas as encarnações, condenados a nascer como inimigos naturais: grego e troiana, romano e cristã.

Em todas as idades, terminam de forma trágica, com assassinatos, guilhotinas e até suicídio, como Romeu e Julieta. Nas primeiras três estrofes do poema, o sujeito narra todos os fracassos e provações que o casal teve que enfrentar.

Por oposição, na última estrofe fala da vida presente, exaltando suas qualidades e se descrevendo como um bom partido. Face a tantas peripécias, o único obstáculo que enfrentam agora (o pai que não aprova o romance) não parece tão grave assim. Com humor, o eu poético parece convencer sua namorada que desta vez merecem um final feliz, digno de cinema.

O poema deixa uma mensagem de esperança: devemos sempre lutar pelo amor, mesmo quando ele parece impossível.

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

A produção poética de Carlos Drummond de Andrade tem como um dos seus focos principais a reflexão sobre a passagem do tempo, a memória e a saudade. Nesta composição, o sujeito lírico começa por estabelecer a diferença entre "ausência" e "falta".

Com a experiência de vida, percebeu que saudade não é sinônimo de falta mas o seu oposto: uma presença constante.

Assim, a ausência é algo que o acompanha a todo o momento, que é assimilado na sua memória e passa a fazer parte dele. Tudo aquilo que perdemos e do qual sentimos saudade está eternizado em nós e, por isso, permanece connosco.

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

Este é um poema com forte crítica social que aponta os vários modos como a sociedade condiciona a vida dos indivíduos, ditando aquilo que devemos e "precisamos" fazer.

De modo irônico, Drummond reproduz todas essas expetativas e regras de conduta, mostrando até que ponto a sociedade regula as nossas relações pessoais. Refere pressões como a necessidade de casar e constituir família, o ambiente de competição e hostilidade.

A segunda estrofe, mencionando patriotismo e fé em Deus, parece ecoar os discursos ditatoriais. Existe também a menção do sistema capitalista, a necessidade de "pagar" e "consumir". Citando vários exemplos, o sujeito enumera as formas como a sociedade nos manipula, isola e enfraquece através do medo.

A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.

"A Máquina do Mundo" é, sem dúvida, uma das composições mais majestosas de Carlos Drummond de Andrade, eleito o melhor poema brasileiro de todos tempos pela Folha de São Paulo.

O tema da máquina do mundo (as engrenagens que condicionam o modo como o universo funciona) é um tema bastante explorado pela ciência e a literatura medieval e renascentista. Drummond faz referência ao canto X dos Lusíadas, passagem onde Tétis mostra a Vasco da Gama os mistérios do mundo e a força do destino.

O episódio simboliza a grandeza da construção divina face à fragilidade humana. No texto de Camões, é evidente o entusiasmo do homem face ao conhecimento que lhe é concedido; o mesmo não acontece no poema do autor brasileiro.

A ação é situada em Minas, terra natal do autor, o que o aproxima do sujeito lírico. Ele está contemplando a natureza quando é atingido por uma espécie de epifania. Nas primeiras três estrofes, é descrito o seu estado de espírito: um "ser desenganado", cansado e sem esperanças.

A compreensão súbita do destino o assusta e desvia. A perfeição divina apenas contrasta com a sua decadência humana, opondo o sujeito à máquina e evidenciando a sua inferioridade. Assim, rejeita a revelação, recusa compreender o sentido da própria existência por cansaço, falta de curiosidade e interesse. Permanece, deste modo, no mundo caótico e desordenado que conhece.

Ainda que mal

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Neste poema, o sujeito lírico manifesta todas as contradições e imperfeições que atravessam os relacionamentos amorosos. Apesar de todas as dificuldades de comunicação e compreensão, da falta de verdadeiro entendimento ou intimidade entre o casal, o amor prevalece.

Embora por vezes duvide da própria paixão ("ainda que mal te ame"), mesmo estando ciente da precariedade do sentimento, permanece "queimando" em seus braços. O amor é, simultaneamente, a salvação e a ruína do sujeito.

Canção Final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Com "Canção Final", o poeta exprime de forma primorosa as contradições que vivemos no término de um relacionamento. O primeiro verso anuncia o final de um romance e a intensidade da sua paixão pela mulher perdida. Logo depois, ele vai se contradizer ("não foi tanto assim"), relativizando a força do sentimento.

O tom dos versos seguintes é de indiferença e desdém. O eu lírico confessa que nem os próprios deuses conseguem saber com exatidão aquilo que ele sentiu. A memória é apontada como uma "régua de exagerar as distâncias", que aumenta e exagera tudo.

Além da incerteza, o eu poético desabafa sobre o vazio que o consome: não tem sequer a tristeza, já não tem nem a rotina de "acasalar e sofrer". Sem esperança, não tem nem uma "miragem", uma ilusão que o faça continuar.

O Deus de Cada Homem

Quando digo “meu Deus”,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele

O poema é uma reflexão acerca da condição humana e da sua difícil conexão com a força divina. Na primeira estrofe, o sujeito aponta que a relação de cada um com Deus é particular, só sua. Quando dizemos "meu Deus", não estamos perante uma divindade única mas múltiplos "deuses pessoais". Cada um imagina seu próprio criador, a fé se processa de formas diferentes nos indivíduos.

Na estrofe seguinte, o sujeito sublinha que o uso do pronome possessivo "meu" gera proximidade. Focando na"cumplicidade" entre o humano e o divino, evoca a sensação de companhia e amparo.

A antítese na terceira estrofe ("Mais fraco, sou mais forte") reflete a relação paradoxal deste sujeito com Deus. Por um lado, assumindo que necessita da proteção divina, reconhece a sua fragilidade. Por outro, se fortalece através da fé, superando a "desirmandade", a solidão e a indiferença.

Este laivo de luz se dilui nos versos seguintes, quando o eu lírico define sua fé como uma forna "gritar" sua "orfandade", desabafar seu desespero. Ele se sente abandonado por Deus, entregue à própria sorte.

Acreditando na figura do Divino Criador, se sente preso por ele, submetido aos seus decretos ("O rei que me ofereço / rouba-me a liberdade") e sem poder para alterar a própria vida.

A composição exprime, deste modo, a "ansiedade" do sujeito e seu conflito interior entre a fé e a descrença. Através da poesia manifesta, simultaneamente, a vontade de acreditar em Deus e o medo de que Ele não exista.

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Em "Memória", o sujeito poético confessa que está confuso e magoado por amar aquilo que já perdeu. Por vezes, a superação simplesmente não acontece e esse processo não pode ser forçado.

A composição fala daqueles momentos em que continuamos amando mesmo quando não devemos fazê-lo. Movido pelo "sem sentido / apelo do Não", o sujeito insiste quando é rejeitado. Preso ao passado, deixa de prestar atenção ao tempo presente, aquilo que ainda pode tocar e viver. Contrariamente à efemeridade do agora, o passado, aquilo que já terminou, é eterno quando se instala na memória.

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Não se mate

"Carlos" é o destinatário da mensagem deste poema. Mais uma vez, parece existir uma aproximação entre o autor e o sujeito que reflete e fala consigo mesmo, procurando se aconselhar e apaziguar.

De coração partido, lembra que o amor, como a própria vida, é inconstante, passageiro, repleto de incertezas ("hoje beija, amanhã não beija"). Afirma, então, que não tem como fugir disso, nem através do suicídio. O que resta é esperar "as bodas", o amor correspondido, estável. Para seguir em frente, precisa acreditar no final feliz, ainda que não chegue nunca.

Caminha firme, "vertical", persiste mesmo derrotado. Melancólico, durante a noite, procura convencer a si mesmo que deve avançar com a sua vida, apesar da vontade de morrer, de se matar. Assume que o amor "é sempre triste" mas sabe que deve manter segredo, não pode partilhar o sofrimento com ninguém.

Apesar de toda a desilusão, o poema transmite uma réstia de esperança, que o sujeito lírico procura cultivar para continuar vivendo. Embora seja a sua maior angústia e pareça a sua maior perdição, o amor surge também como o último reduto, no qual precisamos ter fé.

O tempo passa? Não passa

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.

Neste poema, é evidente o contraste entre o tempo exterior, real, e o tempo interior do sujeito, a sua percepção. Embora envelheça e sinta as marcas da idade superficialmente, o eu lírico não sente a passagem do tempo na sua memória ou nos seus sentimentos, que permanecem iguais. Esta diferença de ritmos se deve ao amor que o acompanha. A rotina parece unir mais e mais os amantes, que se transformam em um só verso, um só ser.

Anuncia, movido pela paixão, que a vida não deve ser poupada nem desperdiçada: o nosso tempo deve ser dedicado ao amor, propósito maior do ser humano. Juntos, os amantes não precisam se preocupar com prazos, datas ou "calendários". Vivem em um mundo paralelo, afastado dos outros e entregues um ao outro, porque sabem que "além do amor / não há nada".

Subvertendo regras universais, misturam passado, presente e futuro, como se pudessem renascer a cada segundo por estarem unidos. Deste modo, a composição ilustra o poder mágico e transformador do sentimento amoroso. Algo que faz os amantes se sentirem e querem ser imortais: "só quem ama/ escutou o apelo da eternidade".

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Assim como em outras composições do autor, estamos perante um desabafo do sujeito que parece tentar apaziguar a própria tristeza. O destinatário da mensagem de consolo, tratado na segunda pessoa, pode também ser o próprio leitor. Refletindo sobre a sua jornada e a passagem do tempo, constata que muita coisa se perdeu ("a infância", a "mocidade") mas a vida continua.

Conheceu várias paixões, sofreu perdas e desgostos mas soube conservar a capacidade de amar, apesar de todos os relacionamentos falhados. Fazendo um balanço, enumera o que não realizou e o que não tem, recordando dores e ofensas passadas e revelando que ainda são feridas abertas.

Quase no final da vida, olha para trás, reconhecendo aquilo em que falhou. Perante a injustiça social, o "mundo errado", sabe que tentou se rebelar mas seu protesto foi "tímido", não fez diferença. Mesmo assim, parece consciente de que fez a sua parte e de que "outros virão".

Com a esperança depositada nas gerações futuras, analisando profundamente sua existência e cansaço, conclui que deveria se jogar no mar, terminar com tudo. Como se murmurasse uma canção de ninar, consola seu espírito e espera a morte como se fosse o sono.

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POSTADO POR VALDETE FREITAS EM 28/07/2020
 

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10 poemas memoráveis de Manuel Bandeira


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

Manuel Bandeira (1886-1968) foi um dos maiores poetas brasileiros tendo ficado conhecido pelo grande público especialmente pelos célebres versos Vou-me Embora pra Pasárgada e Os sapos.

Mas a verdade é que, além dessas duas grandes criações, a obra do poeta comporta uma série de pérolas pouco conhecidas entre os leitores.

Na tentativa de preencher essa lacuna selecionamos aqui 10 poemas memoráveis do escritor modernista Manuel Bandeira com as suas respectivas explicações.

1. Os sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!

O poema Os sapos (o trecho inicial encontra-se reproduzido acima) foi criado em 1918 e deu o que falar ao ser declamado por Ronald de Carvalho durante a emblemática Semana de Arte Moderna de 1922.

Numa crítica clara ao parnasianismo (movimento literário que definitivamente não representava o poeta), Bandeira constrói esse poema irônico, que tem métrica regular e é profundamente sonoro.

Trata-se aqui de uma paródia, uma maneira divertida encontrada pelo eu-lírico de diferenciar a poesia que praticava daquela que vinha sendo produzida até então.

Os sapos são, na verdade, metáforas para os diferentes tipos de poetas (o poeta modernista, o vaidoso poeta parnasiano, etc). Aos longo dos versos vemos os animais dialogarem sobre como se constrói um poema.

Conheça uma análise aprofundada do poema Os sapos e confira os versos declamados:

2. Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Esse brevíssimo poema também muito conhecido do autor carrega no título o nome de um procedimento médico. Ao longo das primeiras linhas vemos listados uma série de sintomas.

Se na primeira estrofe o doente sofre sozinho, na segunda parte do poema assistimos a uma consulta com o médico. O doutor dá instruções ao paciente na tentativa de conseguir diagnosticar a doença.

Por fim, assistimos a triste constatação. O paciente ainda tenta encontrar uma saída para o seu problema, mas o médico, é irredutível.

Com num tom poético e ao mesmo tempo irônico, aponta a música como única solução possível.

Leia uma análise completa do Poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira.

3. O último poema

Assim eu queria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

A morte é um tema frequente na poética de Bandeira, assim como, em termos estéticos, podemos apontar o uso de versos livresO último poema condensa essas duas características do poeta, que pretende estabelecer com o leitor uma relação de cumplicidade nesse poema metalinguístico.

O interessante é perceber que ao dizer como quereria construir o seu poema, o sujeito poético já constrói o próprio poema.

4. Vou-me embora para Passárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Eis o mais consagrado poema de Bandeira: Vou-me embora para Passárgada. Aqui encontramos um inegável escapismo, um desejo do eu-lírico de evasão, de sair da sua condição atual rumo a um destino altamente idealizado.

O nome do local não é gratuito: Pasárgada era uma cidade persa (para sermos mais precisos, foi a capital do Primeiro Império Persa). É ali que o sujeito poético se refugia quando sente que não consegue dar conta do seu cotidiano.

Tradicionalmente esse gênero de poética que almeja à liberdade propõe uma fuga para o campo, na lírica do poeta modernista, no entanto, há vários elementos que indicam que essa fuga seria em direção à uma cidade tecnológica.

Em Passárgada, esse espaço profundamente desejado, não existe solidão e o eu-lírico pode exercer sem limites a sua sexualidade.

Leia uma reflexão sobre o poema Vou-me embora pra Pasárgada.

5. Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Finalmente um poema de amor! Manuel Bandeira ao compor Teresa demonstrou, em versos, como se dá o encontro amoroso.

Desmistificando a noção de amor à primeira vista, o eu-lírico transparece no poema exatamente o que sentiu a primeira vez que encontrou Teresa.

Da segunda vez que se viram também o sujeito poético parece não ter ficado nada encantado pelos atributos físicos daquela que viria a transformar-se na sua amada.

É na última estrofe que testemunhamos o encantamento do eu-lírico, que já não consegue mais descrever a parceira e sim o turbilhão de afetos provocado pela presença dela.

6. O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Um poema de amor que recorre aos sentimentos vividos durante a infância, esse é o mote que move O impossível carinho. O eu-lírico não deixa transparecer nenhum aspecto físico ou psicológico da amada, o que sabemos são apenas descrições do sentimento que o arrebata.

Já pela primeira palavra vemos que o sujeito se dirige a alguém, a dona do seu afeto. É com ela que ele deseja partilhar o seu mais íntimo desejo que resulta do sentimento de gratidão. A moça faz com que ele se sinta tão bem que o que brota nele é a vontade de retribuir tudo de bom que recebe.

As alegrias da infância são o oásis sonhado, o lugar de plenitude que o sujeito poético pretende oferecer à amada como forma de agradecimento.

7. Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Nos versos de Poética, Manuel Bandeira se debruça sobre o próprio processo de escrita do poema. Aqui o eu-lírico enfatiza aquilo que aprecia e o que tem repulsa no âmbito da lírica.

Tido como um dos mais importantes poemas do Modernismo brasileiroPoética é um retrato não só da poética de Manuel Bandeira como também de toda uma geração de escritores que não se identificava com o que vinha sendo produzido até então.

Escrito quase como uma espécie de manifesto, por um lado Bandeira nega uma composição rígida, severa, que cumpre normas rigorosas (como faziam os parnasianos) enquanto por outro lado celebra os versos livres, a linguagem informal e a tão contemporânea sensação de liberdade experimentada pelos poetas.

8. Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Esse poema de amor de Bandeira é marcado por uma tristeza e por uma alegria: observamos ao longo dos versos a impossibilidade dos amantes se comunicarem, por outro lado celebramos o fato dos corpos se entenderem apesar das limitações da comunicação.

O sujeito lírico aqui parte do pressuposto que há uma divisão básica entre a alma e o corpo. A alma, segundo o eu-lírico, só é capaz de encontrar sossego em Deus ou no sobrenatural e não em algum ser humano.

Diante dessa lamentável condição, o poema sugere que os corpos - ao contrário das almas - são capazes de se entenderem. O título Arte de amar, versa justamente sobre a oposição corpo e alma e sobre o lugar dos afetos nessa equação.

9. Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.

Desencanto é considerado um metapoema, ou seja, um poema que procura descrever o próprio processo de criação literária.

Nos versos acima é como se o leitor fosse convidado a visitar o escritório do poeta e entender as engrenagens que movem a escrita.

A literatura, nesse caso, é tida como uma espécie de válvula de escape, o lugar onde o sujeito encontra alento para o seu profundo sofrimento. Através da leitura do poema somos capazes de enxergar a dor e o desemparo do poeta, que labuta para transformar os seus transtornos pessoais em palavras.

10. Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

O poema, todo construído a partir de uma metáfora, trata de um tema duro: a preparação para a chegada da morte. É curiosa a escolha do título, bastante simbólico: a consoada é o banquete que acontece na noite de Natal ou na véspera do Ano-Novo.

O tom da escrita é de informalidade, de intimidade e de espontaneidade: o eu-lírico transparece as possíveis reações que teria com a chegada da Indesejada. Os versos, aliás, se constroem com base em duas oposições-chave: a vida e a morte, o dia e a noite.

Podemos concluir, após a leitura dos poucos versos, que embora pareça conformado com o inevitável comparecimento da morte, o sujeito lírico não deseja a sua chegada.

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POSTADO POR VALDETE FREITA EM:28/07/2020


ANÁLISE E RESUMO DO LIVRO 

ESTRELA DA VIDA INTEIRA

ANÁLISE-E-RESUMO-DO-LIVRO-ESTRELA-DA-VIDA-INTEIRAResumo de Estrela da Vida Inteira de Manuel Bandeira

Estrela da Vida Inteira é um livro de poemas de Manuel Bandeira publicado em 1965. Essa obra se destaca na literatura brasileira por solidificar a poesia modernista. Veja abaixo o resumo e análise dessa obra tão importante.

Se você gosta de poesia ou mesmo não gostando precisa aprender, preparamos algo que vai ajudar. Um análise do livro Estrela da Vida Inteira de Manuel Bandeira. Trata-se de uma das obras mais cotadas para cair no ENEM 2018!

Se quiser saber quais são os outros livros que podem cair no ENEM é só clicar aqui.

Ao final do artigo confira alguns dos poemas mais famosos de Manuel Bandeira e perceba neles todo o conteúdo que será tratado neste artigo.

Poeta Manuel Bandeira autor de Estrela da Vida interira resumo e análise do Beduka

Análise de Estrela da Vida Inteira

Esta obra é uma coletânea das poesias de Manuel Bandeira, um conjunto dos livros de poesia que ele escreveu durante sua vida. Por isso, o resumo é sobre a obra como um todo, comentários sobre seus temas, estilos, mudanças, enfim: uma análise.

Vamos a ela!

Nesta análise de Estrela da Vida Inteira, antes de qualquer outra coisa, você precisa saber que foi um livro que solidificou a poesia modernista! Fique atento a essa temática, saiba mais sobre a semana de arte moderna de 22 aqui!

Sobre os versos de Manuel Bandeira em Estrela da Vida Inteira

Os versos em suas poesias são livres. Ele teve muita liberdade criadora e extraía sua poesia do cotidiano. Usou linguagem coloquial e muita irreverência. Não se preocupava com a regularidade métrica e nem mesmo com a pontuação.

Sua linguagem tinha ligações com a tradição simbolista, mas já caminhava na direção de romper com ela e realmente rompeu. Em suas poesias os temas são banais, são da vida cotidiana, da vida simples.

Ele até retomou temas mais comuns na estética dos romantistas, mas acrescentou tons críticos e formas simples e despojadas.

Pode-se perceber também a crítica ao português erudito, aquele usado pelos cultos. Em contrapartida, Manuel Bandeira exaltou a forma espontânea de falar, que era a forma usada pelo povo brasileiro. Ele a isso chamou “a língua viva”.

Reflexões nas poesias de Manuel Bandeira

Na análise de Estrela da Vida Inteira é fácil perceber o contraste entre o paraíso sonhado e o paraíso que foi perdido. São eles a Pasárgada (o sonhado) e a infância (o perdido).

A Pasárgada era o paraíso pessoal, lugar de sua felicidade simples, onde ele andaria  em burro bravo, subiria em pau-de-sebo, andaria de bicicleta e tomaria banho de mar entre outras coisas.

Bandeira misturou a estética simbolista e a parnasiana com a modernista. Não deixe de estudar sobre esses estilos literários também!

Claramente nota-se certa estranheza do poeta diante de um mundo que o circunda. Mas do que isso, em seus versos, notamos como os acontecimentos vão refletindo em seu interior.

Temas recorrentes em Estrela da Vida Inteira

Na análise de Estrela da Vida Inteira você notará a recorrência da temática da solidão, do humor, da indignação em relação ao tipo de poesia que ele chama de pré-fabricada. Além disso há ironia, tristeza, idealização de um mundo melhor e descrença no sentido da vida.

Atenção também para o existencialismo (reflexão sobre a existência) e para a exploração das cenas e imagens brasileiras.

A morte

Um tema muito recorrente que você deve conhecer melhor neste resumo e análise de Estrela da Vida Inteira é a morte. Manuel Bandeira escreveu como quem vivia provisoriamente. De fato, em sua biografia isto pode ser constatado, pois ele tinha sido diagnosticado com tuberculose. Lembre-se de que essa doença era mortal no início do séc XX.

A experiência de vida se uniu à experiência poética. Ainda assim, sua poesia não foi somente de acontecimentos biográficos. Trata-se de poemas com uma universalidade simples, por abordarem o cotidiano que serve para todos.

Em seus textos, apesar de falar da morte, não se percebe medo, desespero ou dramatização. A consciência da morte conduziu Bandeira a uma valorização da existência cotidiana, que para ele era única, irrepetível e insubstituível.

Manuel Bandeira e o modernismo

Neste resumo e análise de Estrela da Vida inteira, este tópico não poderia ficar de fora. Bandeira atravessou todas as fases do modernismo. Mário de Andrade chegou até a reconhecê-lo como o anunciador de uma nova poesia.

Bandeira e Drummond são Incorporadores do prosaico e coloquial no poesia brasileira moderna. Os versos são mais soltos e irregulares. Contudo, ele também escreveu poesias com redondilhas da lírica medieval, com versos decassílabos e até sonetos.

Na verdade, ele aderiu gradativamente ao modernismo e o equilibrou com estéticas anteriores, unindo o tradicional e o inovador. Bandeira não deixou de admirar escritores do passado como Luíz Vaz de Camões e Gonçalves Dias.

Livros presentes em Estrela da Vida Inteira

Continuando nosso resumo de análise de Estrela da Vida Inteira ressaltamos os livros presentes na obra:

A Cinza das Horas: Livro que segue a tradição simbolista e parnasiana, mas já caminhando para a ruptura com essas tradições.

Carnaval: Para bandeira, no carnaval todas as fantasias são liberadas. Não há unidade e é neste livro que se encontra o poema “Sapo” que satirizou o parnasianismo e foi o hino dos modernistas de 1922.

O Ritmo Dissoluto: Neste acentua-se na poesia, a simplicidade popular e o prosaísmo.

Libertinagem: É o livro no qual se percebe o amadurecimento do poeta em relação à liberdade estética.

Estrela da Manhã: Livro de poesias de um Bandeira com mais de 50 anos

Livro dos Cinquant’Anos: Foi escrito sob encomenda  e feito com urgência.

E mais: Belo BeloMafuá do MalungoOpus 10 e Estrela da Tarde.

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Aproveite e veja também:

Após essa leitura do resumo e análise de Estrela da Vida Inteira, acompanhe agora alguns dos poemas mais conhecidos de Manuel Bandeira.

Vou-me Embora pra Pasárgada

Pasárgada poema de Manuel bandeira em Etrela da vida Inteira

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconsequente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcaloide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Pneumotórax

Pneumatórax poema modernita de Manuel bandeira no resumo do Beduka

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

— Diga trinta e três.

— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…

— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Os Sapos

O sapos poema de Manuel Bandeira no resumo e análise de Beduka

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

— “Meu pai foi à guerra!”

— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: — “Meu cancioneiro

É bem martelado.

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos.

O meu verso é bom

Frumento sem joio.

Faço rimas com

Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A fôrmas a forma.

Clame a saparia

Em críticas céticas:

Não há mais poesia,

Mas há artes poéticas…”

Esses são alguns dos poemas mais famosos dele, e podem estar na prova do Exame Nacional do Ensino médio (ENEM) deste ano. Se gostou do resumo e análise de Estrela da Vida Inteira e este artigo foi útil, deixe nos comentários e nos acompanhe no Instagram e no facebook.

POSTADO POR VALDETE FREITAS EM 27/08/2020

Os 12 maiores poemas da literatura brasileira


Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

Na literatura brasileira encontramos um mar de pérolas poéticas por isso, acredite, compor essa lista com apenas doze poemas foi das tarefas mais árduas que se pode ter. Versos de amor, de solidão, de amizade, de tristeza, autores contemporâneos, românticos, modernos... são tantas as possibilidades!

Cada um de nós sabe de cor alguns versos dos seus poemas favoritos. Teriam sido aprendidos na escola? Oferecidos por um namorado? Escritos em um cartão de aniversário? Muitas vezes já perdemos a origem do encontro, mas os versos permanecem lá, conosco, fazendo companhia ao nosso pensamento ao longo dos anos.

Esperamos que você se delicie com a lista abaixo e que os poemas escolhidos passem a fazer companhia aos seus eleitos. Desejamos a todos uma boa leitura!

1. Soneto de Fidelidade (1946), de Vinicius de Moraes

Um dos mais famosos poema de amor da literatura brasileira é o queridinho de muitos apaixonados ao longo de gerações. Escrito pelo poetinha Vinicius de Moraes, ao contrário do habitual na lírica amorosa, aqui o eu-lírico não promete amor eterno nem garante que permanecerá apaixonado até o fim dos seus dias.

Antes, o sujeito poético promete amar em absoluto, na sua plenitude e com todas as suas forças enquanto o afeto durar. Ao longo dos versos ele garante a entrega (mas não necessariamente a longevidade da relação). Ao comparar o seu amor ao fogo, o eu-lírico reconhece que o sentimento é perecível e que, assim como a chama, se apagará com o tempo.

Mas o fato de ser uma ligação provisória não retira a beleza do sentimento, antes pelo contrário: por ser efêmero é que o sujeito poético proclama a necessidade de ser intenso e aproveitar cada momento.

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Saiba mais sobre o Soneto de Fidelidade.

Se você gostou de conhecer um pouquinho dos versos apaixonados desse grande escritor, experimente descobrir também Os melhores poemas de Vinicius de Moraes.

2. Poema No Meio do Caminho (1928), de Carlos Drummond de Andrade

O polêmico poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em 1928 foi inicialmente pouco compreendido e até mesmo repudiado devido ao excesso de repetições (afinal, dos dez versos, sete contém a famosa expressão "tinha uma pedra").

Fato é que o poema em pouco tempo acabou por entrar no imaginário coletivo principalmente por tratar de uma circunstância comum a todos nós: quem é que nunca encontrou uma pedra no meio do seu caminho?

Os versos tratam dos empecilhos que vão surgindo ao longo do nosso percurso e de como escolhemos lidar com esses pequenos (ou grandes) imprevistos que nos deslocam do nosso itinerário inicialmente idealizado.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Descubra mais sobre o poema No meio do caminho.

Já é fã de carteirinha do poeta? Então relembre também 25 poemas de Carlos Drummond de Andrade.

3. Vou-me embora pra Pasárgada (1930), de Manuel Bandeira

Quem é que um dia não teve vontade de mandar tudo para o espaço e fazer as malas rumo à Pasárgada? O poema lançado em 1930 fala diretamente a cada um de nós que, um belo dia, diante de um aperto, teve vontade de desistir e partir em direção à um lugar distante e idealizado.

Mas afinal, você sabe onde fica Pasárgada? A cidade não é propriamente imaginária, ela de fato existiu e foi a capital do Primeiro Império Persa. É pra lá que o eu-lírico pretende escapar quando a realidade presente o sufoca.

O poema de Bandeira é marcado portanto por um desejo de escapismo, o sujeito poético anseia alcançar liberdade e descanso em um lugar onde tudo funciona em plena harmonia.

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe - d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Descubra mais sobre o poema Vou-me embora pra Passárgada.

4. Poema sujo (1976), de Ferreira Gullar

Poema sujo é considerado a obra-prima do poeta Ferreira Gullar e foi concebido no ano de 1976, quando o criador estava no exílio, em Buenos Aires.

A extensa criação (são mais de dois mil versos) narra um pouco de tudo: desde a origem do poeta, até as suas crenças políticas, o seu percurso pessoal e profissional e o seu sonho de ver o país encontrar a liberdade.

Marcadamente autobiográfico, o Poema sujo é também um retrato político e social do Brasil dos anos setenta marcado pela ditadura militar.

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já

um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-cidreira

Ficou curioso para descobrir mais sobre esse clássico da literatura brasileira? Então conheça mais detalhadamente o Poema sujo.

5. Saber viver (1965), de Cora Coralina

Simples e singela, essas são as características-chave da lírica da goiana Cora Coralina. A poeta começou a publicar os seus versos quando tinha 76 anos de idade, também por esse motivo vemos no seu trabalho um tom de sabedoria do vivido, de quem passou pela vida e recolheu conhecimento ao longo do percurso.

Saber viver é um exemplar típico da poética da escritora e condensa em alguns poucos versos o que lhe parece essencial para o leitor. Trata-se de uma reflexão sobre a vida feita a partir de um vocabulário descomplicado e com uma sintaxe informal. É como se o eu-lírico se sentasse ao lado do leitor e partilhasse com ele aquilo que extraiu de conhecimento ao longo do caminho.

Vemos nos versos o destaque para a vida em comunidade, para a partilha, para o sentimento de entrega e comunhão com o outro - é justamente a partir desse encontro que surgem os momentos de maior fruição.

Não sei…
se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura…
enquanto durar.

Conheça também Cora Coralina: 10 poemas essenciais para compreender a autora.

6. Retrato (1939), de Cecília Meireles

A poesia de Cecília é assim: intimista - quase como uma conversa a dois -, autobiográfica, autorreflexiva, construída a partir de uma relação de intimidade com o leitor. A sua lírica também gira muito em torno da transitoriedade do tempo e de uma reflexão mais aprofundada acerca do sentido da vida.

Em Retrato encontramos um poema que oferece ao leitor uma visão do eu-lírico autocentrado, congelado no tempo e no espaço através de uma fotografia. É a partir da imagem que a reflexão é tecida, e, fomentada por essa criatura retratada na fotografia, são despertados os sentimentos de melancolia, de saudade e de arrependimento.

Encontramos nos versos pares opositores: o passado e o presente, o sentimento de outrora e a sensação de desamparo atual, o aspecto que se tinha e o que se têm. O sujeito poético tenta entender ao longo da escrita como essas transformações bruscas se deram e como lidar com elas.

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Conheça também os 10 poemas imperdíveis de Cecília Meireles.

7. Dona doida (1991), de Adélia Prado

Adélia Prado é uma poetisa de mãos cheias e Dona doida é dos grandes exemplares da sua poética. Ao longo dos brevíssimos versos somos transportados do passado para o presente e também do presente para o passado.

Apesar de já ser casada e ter filhos, a mulher não nomeada ao ouvir a chuva grossa é carregada para o passado, para uma cena da infância que partilhava com a mãe. A chuva opera aqui como uma espécie de máquina do tempo, empurrando a protagonista apesar da sua vontade.

Todo o poema é construído com base em experiências muito cotidianas (a ida às compras, o ato de cozinhar). É a partir desses pequenos gestos e da mistura dos tempos que constrói-se uma reflexão mais profunda acerca da vida.

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Gostou de ler Dona doida? Em 9 poemas encantadores de Adélia Prado você encontra mais exemplares dessa lírica tão especial.

8. Incenso fosse música (1987), de Paulo Leminski

Leminski foi um poeta recentemente redescoberto pelo grande público que provocou o encantamente imediato da audiência. Sua lírica é construída a partir de uma sintaxe simples e de um vocabulário cotidiano e aposta na partilha com o leitor para se construir um espaço de comunhão.

Incenso fosse música talvez seja o seu poema mais celebrado. Incluído no livro Distraídos venceremos, o poema é composto por apenas cinco versos e parece ser como uma pílula de sabedoria, apresentando um conhecimento de vida num espaço muito concentrado.

A composição trata da questão da identidade e da importância de sermos nós mesmos, sem nos deixarmos abater diante dos obstáculos que se apresentam. O eu-lírico convida o leitor a mergulhar dentro de si próprio e a seguir em frente, apesar dos percalços, prometendo um futuro promissor.

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Aproveite e conheça também Os 10 melhores poemas de Leminski.

9. Os três mal-amados (1943), de João Cabral de Melo Neto

Os versos abaixo são um pequeno trecho do extenso poema Os três mal-amados. Essa bela criação feita para quem tem fôlego percorre algumas páginas e discorre sobre os efeitos avassaladores do amor na nossa vida cotidiana.

Comparando o amor a um animal faminto, vemos como o sentimento que nos arrebata domina uma série de aspectos do nosso dia a dia. E quem não se identifica com as cenas descritas por João Cabral de Melo Neto? Todo apaixonado certamente já experimentou em algum momento essa sensação de desamparo e euforia.

O amor aqui também parece como uma espécie de doença e se alastra por tudo o que está ao redor, dominando a própria identidade do sujeito amoroso, mas também as suas roupas, os seus objetos de estimação e os seus documentos.

O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas
camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
número de meus sapatos, o tamanho de meus
chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas
médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
testes mentais, meus exames de urina.

Os versos de Os três-mal amados são apaixonantes, não são? Aproveite para conhecer também Os 10 maiores poemas de João Cabral de Melo Neto.

10. O tempo (1980), de Mario Quintana

Mario Quintana está entre os poetas mais populares da literatura brasileira e talvez o seu enorme sucesso se deva a simplicidade dos seus versos e a capacidade de identificação com o público leitor.

O famoso poema O tempo tinha como título original Seiscentos e Sessenta e Seis, uma referência aos números contidos dentro dos versos que ilustram a passagem implacável do tempo e também uma alusão bíblica ao número do mal.

Encontramos aqui um eu-lírico que, já ao final da vida, olha para trás e procura extrair sabedoria das experiências que viveu. Como não pode voltar no tempo e refazer a sua história, o sujeito poético tenta transmitir através dos versos a necessidade de se aproveitar a vida sem se preocupar com o que é desnecessário.

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Conheça mais a fundo o Poema O Tempo de Mario Quintana.

Descubra também 10 poemas preciosos de Mario Quintana.

11. Amavisse (1989), de Hilda Hilst

Hilda Hilst é uma das maiores poetisas brasileiras e recentemente começou a ser mais divulgada. Suas composições em geral giram em torno do sentimento amoroso romântico e abordam aspectos como o medo, a posse e o ciúme.

Amavisse é uma boa prova da sua lírica não só porque aborda o seu tema principal como também porque denuncia o tom de entrega do eu-lírico.

O título escolhido inclusive é uma palavra latina que quer dizer "ter amado". Os versos dão conta de um amor fulminante, de uma paixão absoluta que domina o sujeito poético por completo.

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Que tal ler o artigo Os 10 melhores poemas de Hilda Hilst?

12. Rápido e Rasteiro (1997), de Chacal

Chacal é dos nomes mais importantes da safra de novos poetas contemporâneos brasileiros. Com poemas sucintos, criados com uma linguagem acessível e cheios de musicalidade, seus versos contagiam o leitor.

Rápido e Rasteiro é, como o próprio nome afirma, um poeminha breve e maroto que capaz de transmitir em apenas seis versos quase uma filosofia de vida. Um traço fundamental aqui - e de modo geral em toda a lírica de Chacal - é a presença do humor e o tom de diálogo da escrita.

Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.

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